AS AÇÕES COLETIVAS NO BRASIL E A ADVOCACIA (por Dr. André Roque)

O tema das ações coletivas, nas últimas décadas, vem recebendo grande destaque no Brasil. Mesmo a partir das discussões que se desenvolvem sobre o novo Código de Processo Civil, que concentrou sua atenção em outro instituto voltado à resolução de litígios de massa (o “incidente de resolução de demandas repetitivas”), não se arrefeceram os debates sobre os novos rumos da tutela coletiva em nosso país, suas perspectivas e dificuldades.
Com efeito, ao contrário do que se poderia imaginar à primeira vista, o incidente de resolução de demandas repetitivas previsto no projeto do novo CPC, caso aprovado, não afastaria a necessidade de adequada tutela coletiva no Brasil. Isso porque os objetivos perseguidos pelas ações coletivas são mais amplos que os almejados pela resolução de casos-piloto ou casos-teste. O incidente previsto no novo CPC tem por finalidade essencial evitar a multiplicação de processos, proporcionando isonomia e segurança jurídica. Não está entre suas finalidades, todavia, promover o acesso à justiça, nem assegurar a tutela de direitos ontologicamente coletivos.
As ações coletivas, por outro lado, ao permitirem a agregação de pretensões ínfimas, do ponto de vista individual, em um só processo, incrementam o acesso à justiça. Além disso, muitas vezes os titulares dos direitos em discussão não possuem informação ou incentivos suficientes para litigar.
Tais ações, assim, rompem com a resistência inercial de todo um grupo, algo que o incidente de resolução de demandas repetitivas não seria capaz, sequer em tese, de alcançar, eis que naturalmente pressupõe a existência ou, pelo menos, a potencialidade de ações individuais que possam ser qualificadas, em seu conjunto, como repetitivas. Isso sem falar que somente o processo coletivo se destina a proporcionar a tutela de direitos difusos e coletivos stricto sensu.
Ainda hoje, a maior parte das ações coletivas no Brasil – excetuada a situação das ações populares, de legitimação conferida ao cidadão individual – tem sido proposta pelo Ministério Público e, cada vez com maior participação, pela Defensoria Pública e por alguns órgãos públicos de defesa do Consumidor, como os Procons. Em que pese a previsão de legitimação conferida às associações pela Lei da Ação Civil Pública e pelo Código de Defesa do Consumidor e a existência de algumas entidades associativas com atuação importante nessa esfera, em não raras oportunidades as associações se limitam a encaminhar representações e a provocar a iniciativa de outros legitimados.
Em parte, tal fenômeno pode ser explicado pela existência de associações sem qualquer representatividade e sem recursos humanos ou financeiros suficientes para suportar uma árdua batalha judicial. Além disso, tradicionalmente, diversos segmentos de nossa sociedade, em vez de se organizarem para lutar pelos seus próprios interesses, preferem aguardar passivamente a atuação dos órgãos públicos, como um refluxo da cultura paternalista que assolou o país durante várias décadas.
Nada obstante, apenas isso não seria o bastante para explicar esse quadro atual, que não permite desenvolver todas as potencialidades das ações coletivas.
O estudo do direito americano, que possui um dos mais tradicionais sistemas de tutela coletiva do mundo, revela uma realidade absolutamente distinta. Nos Estados Unidos, não existe uma Defensoria Pública estruturada como no Brasil, nem há um órgão público que exerça as mesmas funções que o nosso Ministério Público no âmbito da tutela coletiva de direitos. O principal legitimado para ajuizar uma ação coletiva (class action) naquele país é o integrante da coletividade vitimizada.
Por este motivo, considerando ainda que o processo civil norte-americano é normalmente muito caro, a única maneira de abrir as portas dos tribunais a pessoas pobres ou mesmo de classe média e permitir que contratem profissionais competentes é através do financiamento do litígio pelos escritórios de advocacia.
Obviamente, para que os escritórios se disponham a investir seu tempo e dinheiro na causa, é preciso criar incentivos econômicos, ou seja, a expectativa de que venham a receber altos honorários advocatícios, que em geral correspondem a um terço do valor recebido pelo cliente.
Esse modelo é denominado de advocacia empreendedora (enterpreneurial bar), em que é o próprio advogado quem se dispõe a adiantar todas as despesas do processo, condicionando seu ressarcimento ao êxito. No caso de derrota, o advogado não recebe nada pelos serviços que prestou ou pelas despesas que adiantou.
Evidentemente, confiar o acesso aos tribunais à iniciativa privada dos advogados apresenta diversas desvantagens. A primeira delas é que, nas ações em que não se tem a perspectiva de uma indenização com a participação percentual do advogado, o cliente provavelmente ficará sem a oportunidade de contratar profissionais competentes e terá dificuldades para reclamar seus direitos. Além disso, as contigency fees são a fonte de alguns dos males que assolam o direito norte-americano, tais como o demandismo, a formulação de pedidos indenizatórios em valor abusivo, a busca por clientes de forma eticamente questionável e a estipulação de percentuais excessivos de honorários em caso de êxito.
O direito brasileiro confia na atuação desinteressada e praticamente caritativa do legitimado ativo e, eventualmente, de seu advogado, caso de trate de associação. Um verdadeiro Dom Quixote tupiniquim, que muitas vezes terá a inglória tarefa de lutar sozinho contra poderosas empresas do outro lado.
Embora tal modelo evite situações potencializadoras de conflito de interesses, o preço que se paga pode ser alto demais: a atuação no polo ativo em ações coletivas no Brasil, em regra, não atrai a atenção de escritórios de advocacia mais capacitados, que normalmente aparecem na defesa dos demandados. Esse panorama acaba por criar, na prática, duas distorções: (i) considerável concentração na propositura de ações coletivas por entes públicos, notadamente pelo Ministério Público, pelas Defensorias Públicas e pelos Procons; (ii) potencial desigualdade de armas nos poucos casos deflagrados por associações, que, na maioria das vezes, não terão condições ou recursos financeiros suficientes para contratar advogados mais capacitados.
A distorção é agravada por outro fato observado na prática: ainda que muitas ações coletivas envolvam interesses econômicos de grande vulto, abrangendo grupos numerosos de beneficiados, os honorários sucumbenciais, em caso de procedência dos pedidos, são normalmente fixados nos termos do art. 20, § 4º do CPC, ou seja, mediante apreciação equitativa do juiz. Isso porque, antes de ser deflagrada a fase das liquidações individuais, geralmente será muito difícil estimar o benefício econômico proporcionado pela ação coletiva. O resultado dessa equação, no mais das vezes, é o arbitramento de honorários incapazes de atraírem a atenção de advogados mais capacitados.
Não é a toa que, em um dos projetos de modernização do CDC que são objeto de discussão no Senado Federal (Projeto de Lei nº 282/2012), propõe-se interessante dispositivo, segundo o qual, nas ações coletivas propostas por associações, caso o trabalho profissional tenha sido complexo, os honorários advocatícios serão arbitrados em montante não inferior a vinte por cento sobre a condenação (art. 87, § 2º, inciso I). Outro dispositivo, no mesmo projeto, prevê que, no caso de relevante interesse público satisfeito pela demanda ajuizada pela associação, poderá ser fixada, sem prejuízo da verba sucumbencial, uma compensação financeira, a ser suportada pelo réu e fixada pelo juiz em montante proporcional e razoável (art. 87, § 3º).
Ainda é cedo para saber se essa proposta será aprovada e, certamente, seria preciso aperfeiçoá-la. Mas é importante, desde já, termos em mente importante premissa: qual o modelo de ações coletivas que queremos para o Brasil? Até quando vamos esperar pelo Dom Quixote?
Dr. André Roque é advogado, especializado na área cível e escreve às quintas-feiras no "Caderno de Cidadania"